SOBRE PRAZER E ALEGRIA

4 de julho de 2010 0 comentários

Não, eu não quero prazer! Eu quero alegria!Era isso o que dizia uma das amantes de Tomás, o médico de A Insustentável Leveza do Ser. E Tomás ficava perdido porque prazer ele sabia dar, é coisa de receita fácil, mora no corpo. Mas alegria é coisa mais sutil, mora na alma, no lugar das fantasias e da saudade.Há um jeito fácil de saber se o que se sente é prazer ou alegria. Basta prestar atenção no corpo. Se ele for ficando cada vez mais pesado, é prazer. Se for ficando cada vez mais leve, é alegria.Todo mundo já experimentou isso num churrasco ou numa feijoada, a comida é gostosa, agrada boca e nariz, boca sempre cheia, dentes incansáveis, mais uma cervejinha e, aos poucos, a gente vai ficando desanimado, estufado, incomodado, não agüenta mais. Pena que o costume romano de ter um vomitório em cada refeitório tenha sido esquecido, quem sabe algum arquiteto imaginoso vai convencer um dono de restaurante a introduzir tal progresso no seu estabelecimento. O prazer é sempre assim – ao final o corpo diz: Chega! Não aguento mais!
E isso é verdade também para as coisas do amor carnal. No ônibus a mocinha incansavelmente se dedicava a abraçar, acariciar, apalpar, beijar, mordiscar o namorado, coitadinha, pensando que assim os desejos dele seriam acesos de forma incontrolável e ele nunca mais a abandonaria. Fiquei com dó dela, por não entender das coisas do prazer, e dele, pois de forma alguma gostaria de estar na sua pele. O final, que não presenciei, era inevitável: ela seria mandada embora. E era justamente isso que o Tomás fazia com todas as suas amantes: não deixava que nenhuma delas dormisse em sua casa. Terminada a orgia do amor, tratava de chamar um táxi e despachá-las para suas casas, porque sua maquineta de prazer não era realejo que fica tocando enquanto se gira a manivela. Há manivelas que, depois de algumas voltas, se recusam a girar de novo, ficam emperradas. Assim é a máquina do amor – tanto nos homens quanto nas mulheres.Com a alegria é diferente. O corpo vai ficando cada vez mais leve; quanto mais come, com mais fome fica.
Você vai dizer que não pode ser, que nãoexiste jeito de comer sem se encher. Pois eu digo que tudo tem a ver com a fome que se teme com a comida que se come.Foi justamente isso que pôs meu realejo de pensamento a funcionar. E esse realejo, posso assegurar, não precisa de manivela para produzir música, é moto-contínuo, movido por alegria, pois pensar é uma alegria, brincar com as idéias, como se fosse criança brincando: criança não se cansa, só pára de brincar por imposição dos superiores, pois brinquedo, além de dar prazer, dá alegria também. E é por isso que mesmo quando o corpo é obrigado a parar, a cabeça desobedece e continua a brincar. O que não é o caso do prazer, pois quem seria louco de continuar a comer a feijoada no pensamento, se o estômago não agüenta mais? Barriga que se encheu gostaria mesmo é de se esquecer do que comeu...Uma outra diferença é que o prazer, para acontecer, precisa que a coisa exista. Ele precisa da feijoada, do churrasco, da boca que dá o beijo. Já a alegria, para haver, não precisa que a coisa exista. O que me faz pensar que ela deve ser mais divina que o prazer pois, a se acreditar no Riobaldo, Deus é aquele que é,mesmo quando não existe.
A alegria é coisa de criança. Pois criança se alegra com qualquer coisa, bolinha de gude, pião, casa de toquinho, torre de dominó, panelinha de fazer comidinha, coisa do mundo de faz-de-contas. E percebi que também sou assim. Claro que meu pensamento sabe trabalhar as coisas importantes. Mas quando ele está livre e não lhe dou uma tarefa a cumprir, ele anda vagabundo como criança, do jeitinho do Menino Jesus como conta Alberto Caeiro, brincando com idéias sem importância, como os riachinhos, as cachoeiras, as saracuras, os pintassilgos, os pica-paus, as araucárias, um inútil monjolo velho, um forninho de barro que ainda não fiz, as galinhas d’angola que ainda não estão lá, uma casinha que vou fazer para a minha neta, tudo lá nos ermos da Mantiqueira, mesmo quando lá não estou, só na imaginação, que é o lugar onde a alegria vem, me faz virar menino e começo a voar como o Peter Pan.
ALEGRIA-RUBEM ALVES
Pra quem não sabe, é bom prestar atenção. Assim também é o amor. Para alguns, a dita pessoa amada é só objeto de prazer, feijoada, comeu, gostou, ficou cheio, enjoou... Para outros a pessoa amada é alegria leve do pensamento, que brinca com ela mesmo quando está longe. Esses estarão sempre com fome...

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