Transversos

11 de julho de 2013 0 comentários
 
Dona Doida
Adélia Prado
             
 
Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.


Extraído do livro "Poesia Reunida",
Editora Siciliano - 1991, São Paulo, página 108.



TRANSVERSOS
 
E continua chovendo desafio à porta da nossa casa.
O cardápio é do simples, do mineiro hospitaleiro.
Ás vezes, nem chove tanto assim
e tiramos a roupa do ancoradouro
como se tira o passado do molhado
e ela seca estendida na janela...

Estendido ao fio
um sopro de amor te rege
(no brejo)
feito margaridas brancas
espalhadas na calçada.
Não se distingue  pele de poesia.
Mas a esperteza com que me olhavas
também era desafio.

Eu perco o sono na estamparia
do colorido de um par de olhos
todo dia.
E lampejo no teu beijo.
Saio do estendedouro
e volto depois dos trinta
a regar as plantas em tom suave
e canto a Ave-Maria.
 
Minha mãe acha a Ave-Maria
a reza mais forte do dia.
 
(Lila Morena)
 
 
 

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